Nosso objetivo com este trabalho é contribuir com uma reflexão sobre o sujeito dito metafísico, ao nível consciente e inconsciente, e sobre as contribuições críticas do aporte teórico-prático da Psicanálise à epistemologia e à prática científica. Inúmeras são as questões filosófico-jurídicas e psicanalíticas que se apresentam na pós-modernidade para a subjetividade humana, face às descobertas científicas e medicais. Visto que toda teoria ética pressupõe um sujeito, autor de uma ação consciente e voluntária, e que a Psicanálise coloca a questão das forças inconscientes que influenciam as ações e escolhas, vou apresentar minha exposição em três itens:
1. As subjetividades numa visão transdisciplinar juspsicanalítica.
2. O progresso da tecnociência à luz da Psicanálise. A lei como instância simbólica.
3. Os limites da bioética e os novos direitos nas questões do início e do fim da vida humana. Uma nova prática científica a partir de outro nível ético.
Com efeito, os projetos de adoção e de procriação, na atualidade, principalmente em países desenvolvidos parecem sobrevir após o dito “direito a uma criança” eis que a tecnologia médica permite a cada um fabricar suas crianças, até mesmo indo alugar úteros em países de terceiro mundo. Mas os aspectos psicológicos, conscientes e inconscientes, da adoção e da procriação de uma criança são complexos e exigem um trabalho de luto do “desejo de criança” biológica.
É preciso indagar, então, até que ponto as novas subjetividades e as novas modalidades de família são estruturadas a partir de um ponto ético de impossibilidades e de diferenças. Ou seja, indagar até que ponto as mães são marcadas em seu ser pela “carência originária” amalgamada pela função do pai, e até que ponto os pais são devedores de uma dívida simbólica referida ao patriarcado na sequência de gerações.
Portanto, neste trabalho da cultura de fundar um limite simbólico de diferença subjetiva, o qual tem relação com os aspectos fenotípicos de difícil verificação para os cientistas, a escuta psicanalítica do sujeito como “efeito do traço de identificação” e a elaboração do “vazio central no íntimo do ser”, figura como possibilidade de novos caminhos para reencontrar o próximo. Este “real último da organização psíquica” está na origem de toda criação significante e por isto se afigura como categoria importante a uma perspectiva mais ética para os discursos, científico e jurídico, principalmente no campo da bioética.
É a partir destes argumentos fundamentais que pensamos ser possível produzir, como na técnica psicanalítica, cisões nos significantes que circulam nos debates científicos e políticos, para melhor compreender as novas subjetividades e as novas modalidades de famílias e parentalidades, e encontrar novos caminhos e “soluções paliativas” para as mais profundas dores que são “a impossibilidade de procriar, a perda, o luto e o abandono”. Será necessário tentar transformar o desespero ou o gozo diante da vida e da morte do “sujeito excessivamente clivado” e mais narcísico de hoje, em aceitação dos limites impostos para o “início da vida” e, em esperança de imortalidade para o após “fim da vida”, virtudes estas que brotam no “impossível” do amor.
Os tempos do “início da vida” e do “fim da vida” humana estão cada vez mais sujeitos aos “mecanismos de controle e de poder” através da tecnologia e da medicalização dos corpos e dos gozos. O movimento de liberação sexual e de pensamentos atirou no que viu e acertou no que não viu. Os dispositivos de poder continuam a utilizar a tecnologia, agora não mais para construir identidades sexuais, mas ao contrário para desconstruir identidades indo em rumo à humanização da máquina e maquinização do humano. Critérios cada vez mais materiais e fáticos, baseados em dados genéticos e de sexo, são descritos num nível diacrônico (metonímico) de linguagem tanto científica como política. Assim os critérios de identificação dos sujeitos para o Direito e para a ciência são cada vez menos subjetivos. No Direito as identificações nos registros notariais das características dos sujeitos são formuladas cada vez mais na forma de registro de patrimônio e de bens móveis, e, na área médica, os códigos de classificação de doenças seguem um estilo de catálogos fenomenológicos. Assim sendo, a ordem genealógica e a filiação perdem sua correspondência coerente ao corpo e a reprodução bissexuada. O significante pai não é mais correspondente ao companheiro desejado pela mãe, e a mãe pode não ser mais aquela que coloca o ser no mundo. As palavras “pai” e “mãe” passam a significar aquele ou aquela que a ciência lhe enunciar em tais funções.
No caso das novas legislações sobre filiação, saímos da ordem do Direito como ficção e entramos na ordem do Direito como reificador dos fatos, deixando anônimo um “terceiro” doador ou portador, e em privando radicalmente uma criança da filiação paternal e maternal originária, ou até mesmo portadora. A partir destas forçagens, tanto jurídicas como medicais, causa-se uma capitis diminutio ao direito da criança.
O psicanalista Jean-Pierre Winter publicou recentemente na França o livro Homoparenté, no qual ele questiona: qual “fantasma” é subjacente nas novas parentalidades? A sua realização é suficiente para transformá-lo em um desejo legítimo? Ele ressalta que, nos casos onde o Direito não interdita determinadas situações de fato, ele passar a instituir formas de incesto legalizadas.
Winter sugere que, para analisarmos as novas problemáticas da “adoção legal das crianças”, é preciso separar o debate entre “direito da criança”, “direito a ter uma criança”, “novas parentalidades de hoje”, “homoparentalidades” e “homossexualidades”. Levanta-se, assim, a questão ética quanto à possibilidade de recepção de todas as demandas individuais e sociais ao nível do Direito e das ciências medicais, pois, segundo Winter, uma vez que o sujeito é o “sujeito da metáfora”, as novas parentalidades apresentam risco psicopatológico de “desmetaforização” para as futuras gerações.
Portanto, a Psicanálise indica, ao campo jurídico e científico, o “princípio da precaução” para fazer face aos riscos de modificação do “sistema normativo” simbólico de parentalidade e de filiação para todos. Ainda que as leis estejam se atualizando neste sentido, urge um trabalho transdisciplinar para encontrar fundamentos mais subjetivantes, para uma nova prática científica que escape das astúcias da razão, não colocando em causa as escolhas sexuais das pessoas por preconceitos morais ou religiosos, mas questionando eventuais consequências do projeto de apagar da filiação a diferença real dos sexos. Uma práxis científica sustentada não somente na materialidade da racionalidade consciente, mas também, num outro nível ético de alteridade inconsciente.
Neste tempo de desubjetivação de massa, é preciso encontrar um estatuto para as novas subjetividades, porém sem perder o prumo, pois os comportamentos continuam a ter um laço estreito com as dificuldades de “interiorização dos interditos fundamentais de humanização”. Entre um significante e outro significante, pai e mãe, o sujeito se institui como o último a emergir. Se, segundo Lacan, “não há linguagem senão que metafórica”, e todo sujeito é um ser-falante, eu ouso dizer que “não existe sujeito senão que da metáfora”.
Finalmente, diante da fragmentação das tradições e, enquanto nada de seguro as substituir, resta-nos forçar os espíritos a enfrentar os enigmas humanos.
Apresentamos, assim, contribuições da ética psicanalítica à bioética e aos “desafios contemporâneos da Psicologia Hospitalar”.