Romeu Felipe Bacellar Filho, ex-assessor jurídico e um dos maiores nomes do direito administrativo brasileiro, foi o entrevistado do primeiro número da Revista da Assejur, lançado em dezembro de 2017. Numa conversa com representantes da associação, ele abordou aspectos importantes da estrutura das carreiras jurídicas no Estado, descrevendo, também, o contexto político em que se deu a fundação da Assejur, em setembro de 1989. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.

 

Romeu Felipe Bacellar Filho: ‘os assesores jurídicos são imprescindíveis à organização administrativa do Tribunal de Justiça. Mais do que ninguém, são eles que conhecem a realidade e as questões enfrentadas pelo Poder Judiciário’

 


Quando começou a ser formado um quadro de consultores no Tribunal de Justiça? Como surgiu a carreira de assessor jurídico?

No início, não havia carreira. Existiam, no Tribunal de Justiça, cargos de assistentes e assessores jurídicos. Eram cargos isolados, sem carreira, em número fixo (tanto assistentes quanto assessores jurídicos), nomeados pela Presidência, independentemente de concurso público.

 

Isso foi na década de 1960?

Eu estou falando de meados dos anos 1950. O Tribunal escolhia pessoas de notável saber jurídico para realizar serviços ligados à área do direito. Várias dessas escolhas foram realmente muito bem feitas. O professor Nelson Ferreira da Luz, por exemplo, catedrático da Universidade Federal do Paraná, foi assistente do Tribunal. Um ex-senador, Lúcio Correa, também prestou relevantes serviços durante muitos anos. Lembro, ainda, o caso do doutor Edmundo Mercer Júnior, que passou de assessor a desembargador. Eles eram equiparados a juiz  de entrância especial. Mas não se pode afirmar que todas as indicações tenham sido criteriosas. Desmandos sempre houve, sendo certo que algumas nomeações privilegiaram laços familiares.

 

Em que período foi instituído o concurso público para ingresso na carreira?

Quando eu ingressei na carreira, já foi por concurso público. Foi o segundo realizado pelo Tribunal. Um concurso disputadíssimo, diga-se, com mais de uma centena de candidatos concorrendo a duas vagas. Isso foi na década de 1970. A carreira estava criada, mas com vício de origem. Além dos assessores jurídicos de carreira, havia os assistentes e assessores isolados, que ganhavam quatro, cinco vezes mais para fazer o mesmo serviço, mesmo sem ter sido submetidos a concurso público. Era uma anomalia gritante. Eu me lembro de vários nomes que lutaram durante muitos anos contra essa distorção: Célio Guimarães, Civan Lopes e Acir Mello, entre outros.

 

Os cargos de assistente e de assessor isolado eram em comissão?

Não. Por incrível que pareça, não eram cargos comissionados. Eram cargos efetivos, mas de provimento isolado. É como se não houvesse carreira nenhuma. Essa situação durou muitos anos, até que se resolveu criar uma carreira única. O problema é que o  nivelamento salarial se fez pelo valor mais baixo. Todos passaram a receber como assessores jurídicos.

 

As funções de assessoria se modificaram com o tempo. O que era concebido como tarefa auxiliar à magistratura se transformou num trabalho mais amplo. Como se deu essa transformação? 

Quando eu fui nomeado, a proporção era de um assessor para cada três desembargadores. Nós fazíamos relatórios e pesquisas. Essas tarefas envolviam uma relação de absoluta confiança e respeito. Mas a carreira sofreu muitas variações. O dispositivo constitucional que iguala as carreiras  jurídicas no Estado [artigo 56 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias] teria que ser respeitado. Ele é importante para a profissionalização do serviço público. Sou favorável a isso. Na década de 1970, quando se realizaram os primeiros concursos públicos, é que a carreira efetivamente teve início. Posteriormente, para atender à necessidade de readequação dos quadros funcionais, os assessores jurídicos passaram a ser recrutados entre bacharéis em direito já integrados em outras carreiras, mediante processos seletivos internos. As vagas que sobejavam eram preenchidas por concurso público. Antes da Constituição de 1988, esse procedimento se justificava plenamente. Era o mesmo mecanismo adotado pelo Supremo Tribunal Federal, que reservava um percentual de vagas para integrantes do seu quadro efetivo. As provas eram dirigidas por bancas muito sérias, muito duras. Mesmo assim, sempre existiram diferenças entre as carreiras jurídicas estaduais.

 

Quanto a prerrogativas, funções e salários?

Sim. Não alcançamos as mesmas prerrogativas dadas aos procuradores do Estado e aos procuradores do Legislativo e do Tribunal de Contas. Nós  nunca conseguimos conquistar a paridade. Faltou apoio do Tribunal de Justiça, exceto no mandato do desembargador Ariel Ferreira do Amaral [presidente do Tribunal de Justiça entre 1977 e 1979] e, notadamente, durante o período do desembargador Alceu Conceição Machado [vice-presidente e presidente do Tribunal de Justiça entre 1981 e 1984], que tinha o maior respeito e a maior admiração pelos assessores  jurídicos. Fora desses períodos, foi tudo muito difícil. Num determinado momento, nós tentamos um projeto de lei que daria opção aos assessores jurídicos de ingressar nos quadros de outras Procuradorias, mas isso não foi adiante.

 

Propostas como essa surgiram antes da Constituição?

Sim, antes da Constituição Federal de 1988 e da Constituição Estadual de 1989.

 

Como foram as articulações para incluir no texto da Constituição Estadual o artigo 56 [ADCT], que trata das carreiras jurídicas?

Não foi fácil. Eu me lembro de ter sido criado, na Faculdade de Direito de Curitiba, um grupo de estudos para analisar as alterações jurídicas e políticas que se anunciavam no final da década de 1980.  O grupo intitulou-se Escrevendo uma nova Constituição para o País. Todas as faculdades de direito participaram. Eu já lecionava nas três [Curitiba, Federal e Católica], e participei ativamente. Fui relator de algumas matérias. Eram muitas ideias, algumas boas, outras nem tanto. Todas foram encaminhadas. Muitas dessas ideias chegaram a ser incorporadas ao texto constitucional. Uma delas foi a equiparação das carreiras  jurídicas [artigo 56 do ADCT], que, para os assessores do Tribunal, acabou sem aplicabilidade efetiva. Isso devido a problemas internos do Poder Judiciário, que não valorizou devidamente os seus quadros de pessoal. É bem difícil mudar esse pensamento, essas antigas práticas, mas precisamos ter em conta que a atividade dos assessores jurídicos não é e nunca foi secundária. Tem uma questão que eu considero importantíssima: a retomada da luta pela possibilidade de inscrição de assessores jurídicos na Ordem [dos Advogados do Brasil – OAB], desde, obviamente, que sejam observadas algumas restrições legais.

 

Já se chegou perto disso?

Já. Nós estivemos perto dessa possibilidade de inscrição na OAB, mas não logramos êxito. E a culpa não foi de fatores externos, mas de alguns colegas que não tinham interesse em pagar anuidade. Os médicos, por exemplo, se inscrevem no CRM [Conselho Regional de Medicina], assim como contadores, psicólogos e assistentes sociais têm os seus respectivos Conselhos. Da mesma forma, seria bom se os assessores jurídicos participassem ativamente da OAB. É uma entidade forte, que poderia dar respaldo às nossas reivindicações perante o Tribunal. Acredito que não haveria resistência por parte dos advogados, mesmo porque nós não faríamos concorrência a eles. As nossas atribuições continuariam a ser fundamentalmente consultivas.

 

Hoje se coloca, também, a necessidade de os Tribunais terem setores encarregados da sua defesa e representação em juízo. Os assessores jurídicos poderiam cumprir essas atribuições?

Esse fator, para mim, é absolutamente inquestionável. Admita-se um exemplo: o presidente do Tribunal tem ajuizado contra si um mandado de segurança. As informações seriam prestadas pela Assessoria Jurídica da instituição, atribuindo-se ao assessor a condição de advogado do Poder Judiciário, assim como o acompanhamento do processo e até mesmo a sustentação oral. O importante é reconhecer que o assessor é um advogado do Poder Judiciário. Essa é a melhor saída. Perceba-se que situação constrangedora surge quando o Tribunal, num embate com a chefia do Poder Executivo, é defendido nos autos por um procurador do Estado ou por um advogado contratado. Não tem cabimento. Ninguém conhece mais as questões do Poder Judiciário do que os assesssores jurídicos. Eu, no limiar da minha existência, estou anotando algumas coisas para serem publicadas somente depois que eu partir. O título que eu escolhi para essas memórias é Idiossincrasias do sistema. Uma das idiossincrasias é essa sobre a qual estamos falando: o Tribunal ter um interesse jurídico e um corpo especializado próprio, altamente capacitado para a sua defesa institucional, e ser representado em juízo por um corpo que lhe é estranho. É preciso criar a mentalidade de que o assessor é um advogado no âmbito do Poder Judiciário. Essa seria  a melhor solução, mais econômica e muito mais confiável.

 

O artigo 56 do ADCT da Constituição do Estado equipara as carreiras jurídicas. Haveria necessidade de alteração legislativa para que esse preceito tenha eficácia?

Entendo que a previsão existente na Constituição Estadual já autoriza os assessores a atuar em juízo para defender os interesses do Tribunal de Justiça. O problema é que as decisões a esse respeito, como é o caso da Adin nº 175-PR, em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do artigo 56, costumam ser interpretadas nem sempre de acordo com o que prescreveu o legislador. São interpretações inseguras, maleáveis, absurdas, sem cabimento. As palavras estão lá, perenes. Não perderam o seu sentido. O que disse o Supremo? Que os assessores exercem uma função muito próxima da advocacia. Que ninguém está mais habilitado do que eles para fazer a defesa institucional do Poder Judiciário. Mas, a partir daí, dessa decisão objetiva, surgem  interpretações para todos os gostos. Vejam o que acontece com os direitos adquiridos no Brasil. Não se respeita o passado, aquilo que as pessoas viveram, as suas experiências, o seu sofrimento. O que vale é o dia de hoje. De tempos para cá, alguns textos de lei passaram a exibir a expressão “aos atuais”, ou algo parecido. É uma expressão que serve para excluir quem já fez, quem já trabalhou, quem está aposentado. É um equívoco do sistema, uma maneira de distorcer as garantias constitucionais.

 

A Assejur surgiu nesse momento de transformações. Como foi?

A interpretação do artigo 56 do ADCT é anterior à Assejur. Eu fui um dos fundadores da associação. O primeiro presidente foi o Eduardo Macedo Bacellar. Naquela época [1989], nós já sentíamos a necessidade de ter um centro de reuniões e discussão. Antes, havia uma diluição, uma falta de proximidade entre os colegas, que se encontravam eventualmente para conversar sobre assuntos do trabalho e da profissão. Não tínhamos um local onde pudéssemos nos reunir. E a associação cumpriu esse papel. Nós promovemos [na década de 1990] cursos, ciclos de palestras que reuniram juristas de alto nível. Era comum a participação de assessores jurídicos como palestrantes. Os eventos, de grande repercussão, lotavam o auditório do Tribunal de Justiça.

 

No quadro político atual, a expectativa para o serviço público não é das melhores. Anuncia-se, por exemplo, uma reestruturação de carreiras cuja tendência parece ser a retirada de direitos e a diminuição de garantias. Como enfrentar questões como essas?

Há algum tempo, quando a ministra Cármen Lúcia, [ex-]presidente do Supremo Tribunal Federal, era professora, eu fui convidado a participar de um livro, organizado por ela, sobre o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido. Escrevi sobre o direito adquirido. Eu sou totalmente contrário a uma certa jurisprudência, que vigorou ou ainda vigora no Supremo, no sentido de que não há direito adquirido contra a Constituição. As coisas não podem ser encaradas de forma simplista. Se eu assegurei um direito sob uma Constituição, não é possível que outra Constituição simplesmente delete esse direito. Isso me parece claríssimo, mas, lamentavelmente, há uma pressão para que a jurisprudência dominante seja atendida. E essa pressão é muito forte sobre as pessoas que compõem os órgãos colegiados da Justiça. No Brasil, a segurança das relações jurídicas não existe. Os próprios ministros do Supremo não se entendem. Eu não gosto de ser pessimista, mas não vejo muitas perspectivas de dias melhores. Parece que há interesse em manter o status quo, em deixar que alguns se beneficiem com essa confusão toda.

 

Acesse, aqui, o texto da entrevista publicado na Revista da Assejur nº 1.

 


Entrevista concedida por Romeu Felipe Bacellar Filho em setembro de 2017 e reproduzida pela Revista da Assejur nº 1, de dezembro de 2017.